Terça-feira, 20 de Outubro de 2009

mirada de francisco kaq sobre o livro demorô de paulo kauim

 

 

 

PAÍS IDEOGRÂMICO DE KAUIM

 

Francisco Kaq

 

Após alguns folhetos poéticos, Paulo Kauim arremessa-nos o livro cujo título se refere a seu longo tempo de gestação e impasse: Demorô!

Se esses folhetos estavam bem próximos do que se chamava poesia marginal, o teor do impasse é de plano revelado na orelha do livro: “Ao final da adolescência, o impacto que tive com a poesia concreta me deixou sem falar. Fiquei sem saída.”

A saída vai passar por certo tipo de incorporação do radicalmente outro da poesia concreta, mas sem que se cheguem a apagar os traços da descontração marginal. Há, ainda, outras referências que parecem decisivas nesse processo, também expostas na orelha: “Fui reler João Cabral para sair da encruzilhada-xadrez de estrelas”... e possibilitar a retomada de sua primeira vivência poética, pela voz do pai pernambucano e repentista. Retomada da infância toda-ouvidos... para chegar, enfim, à fala afiada da escrita.

O pai, seu Biu (um Severino mais de vida que de morte), foi também líder camponês, tendo que fugir da repressão da ditadura, em um percurso que vai levá-lo de Timbaúba (pequena cidade da zona da mata pernambucana) a Taguatinga (cidade-satélite de Brasília). Sem perder, nesse périplo e depois, algo que importa, pois se permite dizer (no poema que Kauim lhe dedica): “a melhor religião é o outro”.

E talvez, também, a melhor poética. De qualquer modo, uma que Kauim intensa e insistentemente exercita.

Nada de solipsismo. Nem mesmo de profundidade introspectiva. Em Paulo Kauim, a tendência de voltar-se ao outro, à alteridade, já se manifesta no diálogo com essas (e mais algumas) poéticas bem diversas.

Num diálogo, decerto, renovador. A concisão acentuada e a auto-ironia afirmativa de “hotel / duas / estrelas // meu / amor / e eu” (eis todo o poema) mostram como ele costuma se afastar do desleixo tão característico dos marginais.

Por outro lado, a mais emblemática forma do abstracionismo geométrico pode ganhar (no poema para Cartola) não só curvas, como um desconcertante movimento:

 

quadrado

do

quadril

da

mulata

 

De modo muito evidente, a sua é uma poesia que referencia, homenageia e dialoga com poetas e outros artistas, que podem ser também amigos (como os poetas brasilienses Donne Pitalurgh e Gabriel Beckman). Em lugar de tentar enumerá-los todos, examinemos um momento em que o processo se extrema e se concentra. O poema “meu pai” começa por “meu pai / é / meu poe / / rimbaudelairezrapoundonnepitalurgregório / / meu mário de sá carneiro / meu mário faustino / meu mário de andrade // gabrielbecruzesousândradécio”, para concluir o paideuma, estrofes e muitos pais depois, com “meu pai / é / seu severino / seu biu”.

Nota-se, aqui, uma sobreposição de escalas muito distintas. O reconhecimento de alguns marcos poéticos decisivos mistura-se com uma admiração (em princípio, generosa) por poetas bem próximos, para chegar, em outros poemas, simplesmente às homenagens a pessoas amigas (que podem também ser artistas, mas tratadas antes de tudo como amigos). Sua poesia está, assim, próxima da circunstância e da vivência pessoal, do gesto afetivo e lúdico, tanto quanto busca eleger um repertório (em boa parte) exigente e rigoroso.

A poética do outro chega a mais um interessante extremo em “sem nonato o mundo é palha”. O poema mais longo do livro é criação coletiva, improviso de três amigos taguatinguenses dedicado a um outro, resultando em algo inusitado – painel colagístico provinciano e espontâneo, um renga haikai desarvorado, que não deixa de emocionar.

Importantíssimo, também, é o abrir-se da sua escrita à alteridade cultural. Paulo Kauim não tece seu diálogo apenas com figuras diversas da cultura erudita brasileira e ocidental, ou com poetas e artistas da cena brasiliense. Há uma forte presença de elementos (e técnicas) japoneses e do Nordeste de nosso país, junto com uma extensa e empolgante mobilização de vetores da cultura afrobrasileira (ou afroamericana).

Nesse processo de incorporação e montagem, adquire grande importância o método ideogrâmico de composição, pelo qual elementos diversos são justapostos, relacionando-se de modo não-subordinativo e não-linear – frequentemente com ênfase em sua disposição no espaço.

Assim, em um dos exemplos marcantes, temos (nas duas primeiras estrofes):

 

samba duchamp

dança semioiticica

nu descendo escadas

pela favela

 

mangueira

mondrian

beira mar

ô beira mar

nossa mirada

alto do morro

malevich

 

As palavras ou versos sucedem-se como planos de um filme, que se metamorfoseiam, contrapõem-se. O som também motiva a montagem: por exemplo, “sAMba” repercute em “duchAMp”, depois em “dANça”, e na estrofe seguinte em “mANgueira” e “mondriAN” (esses dois últimos termos em correlação e rima com o primeiro par). O /ã/, como o bater de um surdo, junta-se com outros fonemas para fazer a teia sonora, que tudo envolve e suspende.

A aproximação inesperada de “samba” e “duchamp” explica-se melhor depois ­- não só pela alusão ao artista plástico Hélio Oiticica (um inventor-artista radical em diálogo com a cultura dos morros cariocas), mas sobretudo por uma sobreposição da tela de Marcel Duchamp (Nu descendo uma escada) nessa mesma ambiência. Aqui se faz inevitável pensar na cena cotidiana de uma moça (ou seria um moço?) descendo a escadaria da favela (como aquela que inspirou o comentário de João Gilberto aos Novos Baianos e rendeu depois um bom samba: “Lá vem o Brasil descendo a ladeira”) – sendo que, agora, despid@.

Mesmo que se possam esclarecer e explicitar relações entre os termos díspares, sua junção imprevista nos atinge, de imediato, com certo impacto. O ideograma acumula maior energia justamente na justaposição de palavras mais distantes ou incongruentes, podendo emitir então, a partir das semelhanças (de som e de sentido) que inadvertidamente vão surgindo, aqueles fulgurantes disparos elétricos (i.e., poéticos).

Mas o que vai então se vislumbrando – em alguns, em especial, e no conjunto dos poemas de Kauim – é um projeto de Brasil, que só pode ser mesmo configurado pelo ideograma. O Brasil que se quer, ou Kauim quer, junta uma diversidade de elementos, alguns impertinentes ao universo cultural brasileiro já fixado; mas, sobretudo, os junta estabelecendo relações não-hierárquicas, que se dão ao jogo de suscitar correlações novas, reverberantes, inesperadas.

Os instantes de paraização do Brasil (ou de algo ao mesmo tempo mais pessoal e mais universal, como em “12 coisas que me tiram do chão”) definem-se como construção propositiva, projetual – do poema-instante-presente ao futuro incerto – e se estabelecem por essas relações predominantemente não-subordinativas, paratáticas.

A importância estratégica desse projeto não descarta poemas que propõem um embate direto com elementos contestados da realidade. Poemas que expõem, por exemplo, a violência da sociedade brasileira contra índios e contra sem-terra – ou a mediocrização midiática da cultura: todo um Brasil que não se quer.

Mas Kauim é mais poeta na trama utópica de outro Brasil (e por que não mundo?), que se abre para o outro e se engendra no entretecer diferenças; tal como parece ser de fato a vocação de nosso país, mas de um outro modo, mais inventivo, improvável e justo.

Falta falar, entretanto, de um voltar-se para o outro igualmente decisivo para apreendermos o que acontece em Demorô. Embora já anunciado, quando tratamos de poesia concreta e ideograma, é necessário enfocar melhor o virar-se da palavra para a imagem – o diálogo ou entrecruzamento de verbal e visual.

Vale dizer que, se o gesto pessoal e lúdico é tão marcado em tantos de seus poemas, Kauim resolveu, por outro lado, projetá-los em espaço público (assinalando sua vocação a um tempo transgressora e coletivista): um arriscado grafite – como no título da última seção de Demorô – ou, mais precisamente, uma aventura gráfica.

Eis um livro visualmente projetado com ousadia e êxito inegáveis (por Masanori Ohashy, em diálogo com o poeta). Começando pelo sábio uso das cores, das páginas e letras, em branco, preto e vermelho e mais raro cinza.

Predomina, ao longo de todo o livro, a composição clara e elegante, com o tipo sem serifa e vastos espaços em branco (às vezes negros), em boa parte exigida pelos poemas concisos. O verso curto ou o quase-verso dinamizam a página e a leitura, chegando, diversas vezes, a resultados mais arrebatadores que os dos poemas mais ostensivamente visuais.

Isso acontece, em certos poemas, com a sutil intromissão de elementos icônicos. Naquele dedicado a Gregório de Matos, a letra “o”, predominantemente o artigo isolado na linha (quase-verso), parece estar mostrando “o / mundo”, “o / Brasil”, a “oca” e (a boca de) “o / boca” (do inferno). Temos aqui não só a representação de uma esfera ou de uma circunferência (em três dos casos), mas também um virtual diagrama com quatro (ao menos) círculos concêntricos.

Em “recapitulo”, o desdobrar das palavras nos quase-versos mostra como, de um (curto) capítulo a outro, acaba por se capturar (em sua indefinição mesma) Capitu. Já no poema para Araci (de Almeida) e Noel Rosa (e também para Caetano Veloso), olho e voz interna flutuam e refluem entre as palavras.

Um contra-exemplo seria o “existir”: ele fica ainda mais bonito em sua diagramação bem espaçada, geométrica, mas esta não é nem intrínseca nem indispensável à configuração verbal do poema.

Em uma rápida avaliação de conjunto, podemos dizer que Kauim assume, no entrelaçamento do concreto com o marginal, a postura leminskyana de assinar “caprichos e relaxos” – construções com alto grau de apuro junto com achados mais espontâneos ou casuais. Estes podem ter, afinal, sua graça e interesse.

Ao contrário, no entanto, do percurso do incrível Paulo Leminsky, temos um trajeto de Paulo Kauim que o leva ao mais difícil, ao mais desafiante – e a conquista que daí resulta só pode causar júbilo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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publicado por paulokauim às 04:13
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