DEMORÔ ABALOU BANGU
Marcos Fabrício Lopes da Silva*
O tratamento desumano que a atual configuração do capitalismo dispensa aos trabalhadores nunca foi novidade no Brasil. Infelizmente, o país teve 400 anos de história imersos em uma economia escravocrata. Fomos condicionados, em nossa cultura e educação, a tratar como “serviçais” e “funcionais” todos aqueles que exercem o trabalho. Somam-se a esse quadro nossos valores éticos de origem católica, que associam o trabalho com a punição dos pecados e a inferioridade pessoal. O poeta Paulo Kauim, em Demorô (2008), ‘abalou Bangu’, ao acender a esperança e apagar a escuridão, mesmo lidando com a paradoxal condição do sujeito brasileiro, homem-bomba e homem-bamba num só ser: “caravalha/a ira/a usura branca/não sabiam/que dos podres porões/das escravavelas/sairia/o/samba/o vento/no lenço/no pescoço/no arco/na lapa”.
Kauim, com despojamento neologístico, lança mão do criativo “escravavelas” para mostrar explicitamente a verdadeira intenção da fúria colonialista promovida por Portugal no sentido de explorar ao máximo as riquezas materiais e imateriais do Brasil, tratado como mero apêndice da Coroa Lusitana. Eça de Queiroz teve a pachorra de dispensar dois comentários infelizes sobre o Brasil. Em Uma campanha alegre, o escritor disse: “Porque, enfim, o que é o brasileiro? É simplesmente a expansão do português”. Falou, pela cloaca, que: “O brasileiro é o português – dilatado pelo calor”. Desconstruindo o lusotropicalismo, Kauim destaca outra realidade: inteligência, criatividade e sabedoria eram transportados nos tumbeiros, mesmo que os traficantes só tivessem olhos para o potencial mercadológico cravado na exploração trabalhista da mão-de-obra negra. O poeta, assim, mostra que a elite brasileira se fundamenta em um moralismo europeu colonial, defensor da ordem pela via da igualdade e do respeito ao próximo, sendo ao mesmo tempo defensor da escravidão e da divisão da sociedade entre nobres e servos. Um discurso moral perverso, legitimador dos interesses privados das classes dominantes sobre a conduta e a cultura das classes trabalhadoras. Quem presta atenção nos “africânticos” de Paulo Kauim não cai no conto da democracia racial brasileira propagada em Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre.
O autor de Demorô nos oferece um achado conceitual para contemplar a nossa musicalidade genuinamente talentosa: “samba:/ pára-raio/do morro”. A beleza se coloca no lugar na tristeza para promover a alegria, graças ao empenho dionisíaco de nossa brava gente brasileira que sacou, desde priscas eras, os efeitos tenebrosos do apolíneo mundo excludente. Kauim sugere como trilha sonora dos afetos outros ritmos nascidos na quebrada, onde a reta se curva para contemplar a riqueza da diversidade: “amor/ não/ é/ buraco/ é/ cratera/ de/ abraços/ fogo/ e/ gelo/ rubi/ e/ mano/ brown/ na/ mesma/ estação/ de/ rádio”. O escritor ainda destaca o amor como a celebração do encontro de peles que se admiram, de almas que se congratulam. Tratar o maior dos sentimentos como buraco é bestializar o sublime que só o afeto açucarado pode nos oferecer. Com a graça de tirar proveito do quente e do frio, sem a gente precisar apelar para o morno das conveniências. A convivência é uma corda estendida entre dois pólos: a distância e a aproximação. Como mágicos do amor e malabaristas da dor, a gente se mistura, promovendo vínculos de qualidade. Que o nosso rádio não fique surdo diante da música polifônica e dialógica das ruas. No beco escuro, explode a violência – como ressaltam Os Paralamas do Sucesso, na voz de Herbert Vianna. Porém, Paulo Kauim nos revela que no beco escuro também explode poesia.
Em um apurado trabalho de educação sentimental, o poeta traz as várias facetas do amor para o tablado literário das exposições sem imposições: “entre tantas patologias/contaminado sou/ pelo amor/ amor é doença/ e cura/ mordida/ e antídoto/ amor fura olhos/ beija pupilas/ amor é só/ é troca/ sem/ troco/ epiderme/ do/ ódio/ ir ao trabalho com amor/ é suicídio/ beijar na boca sem amor/ é abismo/ sexo sem amor/ é só sexo/ só sexo é mais só/ amor contamina/ sem cegar/ amor entra no sangue/ sem coagular/ amor desentope”. Esta nobre concepção afetiva lê a contrapelo a configuração do amor no capitalismo contemporâneo. Em uma cultura na qual prevalece a orientação do marketing e em que o sucesso material é o objetivo e o valor mais importante, não há por que se espantar com a forte tendência, na qual as relações humanas de amor estão obedecendo aos mesmos modelos que governam o mercado de bens e de trabalho. Ironicamente, Kaium desmonta esse materialismo chinfrim, colocando no lugar dele uma poética do valor enquanto apreço: “amor não aceita cheque/amor é à vista/amor é caro”. Nada de felizes para sempre ou até que a morte nos separe. Sabedoria de marinheiro, sugere o poeta, para melhor viver as razões do coração: “amor é onda/maré baixa/maré alta”.
A poética de Kauim é capaz de unir o amor na falta, desejando o que não temos, e o amor na presença, alegrando-nos com o que já se encontra à nossa disposição. Quem achava, no embalo da Ilha de Caras, que chique é ficar em um hotel cinco estrelas, de pernas para o ar, caiu do cavalo. A voz poética de Kauim transforma ninhos de concreto em pousadas de amor: “hotel/ duas estrelas/ meu/ amor/ e eu”. Coladinhos com vontade, a separação é a dor que arde: “semana santa/sem você/um inferno”. Quando alguém nos afeta de alegria aumenta nossa potência de agir e nosso tesão pela vida. Nem tudo alegra, pois o mundo também entristece. Amiúde aliás. E aí, só nos resta odiá-lo. Ódio pelo que nos faz passar a um estado menos potente de nós mesmos. Considerando que apreciamos a flor em sua integridade, isso significa dizer que os espinhos também precisam ser contemplados em nosso jeito delicado e visceral de amar.
* Professor das Faculdades Fortium e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.
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